So I got my North American christening a few days ago.
E, por incrível que pareça, gostei da coisa toda bem mais do que achava que fosse gostar. Algumas recorrências se fizeram notar por entre as coisas novas. A primeira delas (e, suponho, a mais feliz) foi fazer uma viagem cheia de amigos. Em Toronto, primeira porção de solo (frio) do sub-continente onde pus os pés, consegui – em 90 minutos – comprimir sorrisos, planos e expectativas com um casal de amigos que amo. A última vez que nos vimos foi há pouco menos de um ano, quando ainda moravam na Espanha. A vida dá mesmo voltas. E grandes, algumas vezes.
Na capital americana, depois de dias intensos de trocas de impressões, trabalho e contatos na academia (sempre a academia), me encontrei com outra amiga (que já não via há bem mais tempo) e foi ótimo re-conectar, re-conversar, trocar livros e ideias. E de novo, planos, memórias. Aproveitamos uma tarde ensolarada de domingo para andar pela Tidal Basin, dar um oi para os monumentos e memoriais.
Ao me deparar com Abraham Lincoln, Thomas Jefferson, Martin Luther King Jr., Roosevelt e soldados das guerras do Vietnã e da Coreia – além de figuras lúgubres da Grande Depressão – foi fácil perceber por que os americanos ainda têm em si muito viva a ideia de destino manifesto, presente na cabeça dos colonizadores ingleses antes que eles deixassem o Velho Mundo. Foi como sentir penetrar pela pele os valores que fundaram o país. Estão vivos e vão muito bem, obrigado. Foi um choque perceber a diferença de trato que esses gringos têm com a memória deles e, por outro lado, lembrar como lidamos com a nossa. Temos, sim, a memória curta. Lá eles empenham recursos para não se esquecer da sua, para manter a veia do desbravamento pungindo sempre. Por um instante, acho que consegui captar um pouco o porquê de os americanos serem tão orgulhosos de seu país. E algo do porquê de serem tão competitivos ou profundamente militaristas: a guerra exerce uma função de coesão social importantíssima e, se me permitem, acho que isso tem muito a ver com a raiz protestante da cultura norte-americana: erradicar o mal é uma tarefa moral e um dever dos homens e mulheres de bem (principalmente dos homens de bem). É preciso que exista a dicotomia entre o mal e o bem, us versus them, para que isso funcione. E funciona. Aqui embaixo as coisas não são tão assim separadas em caixinhas – ou talvez a gente use mais caixas para separar as coisas ao invés de apenas duas (obrigada, Mama Africa!). A impressão que tive foi a de que o protestantismo também ajudou a fundar, consolidar e sacralizar valores como democracia (pelo menos como eles a veem lá, um pouco diferente da nossa tradição democrática aqui) e liberdade de expressão. Mas, por outro lado, dessa mesma raiz saiu a crença na meritocracia e, dela, o capitalismo exacerbado pelo qual nossos primos gringos são conhecidos.
A meritocracia, como a gente sabe, é uma falácia. Não sei se existe de verdade nem na cabeça de quem acredita nela (e isso é algo que vai muito além de simpatias com esquerda ou direita), mas, nos EUA, acho que isso é uma realidade. Deus não abençoa quem não trabalha e o destino de quem não trabalha é ser pobre. Não fiquei lá tempo o bastante para observar, mas deu pra ver que Max Weber fez e faz, afinal, muito sentido. Como não ver a afinidade entre protestantismo e capitalismo in your face? Por outro lado, acho que fica visível também de onde surgiu a megalomania, o capitalismo selvagem, enfim, a Times Square. A riqueza antes era bênção de Deus (e não usura ou pecado, como na nossa tradição franciscana católica) e hoje, acho que continua sendo um dever moral. Acho que a necessidade de ganhar cada vez mais é uma anomalia desse tipo de valor. Mas realmente é preciso se passar mais que uma semana e meia num lugar para perceber algumas coisas (principalmente as que a gente julga ser óbvias).
Enfim. A gente fica viajando nessas coisas, mas é importante não deixar de ‘viajar na viagem’ – tentar estar cem por cento presente onde se está. MindFULLness.
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Nova York se apresentou pra mim primeiro nas ondas de uma banda septuagenária de Dixie Land que tive a sorte de presenciar na NY Public Library for the Performing Arts. Veio depois nas notas de outra banda de jazz tocando numa tarde aleatória na Washington Square e, finalmente, se mostrou hipnótica no palco do Village Vanguard nas notas do piano de Kenny Barron.
Se mostrou inspiradora através do Metropolitan e do Natural History Museum. Foi bom ter companhia para versar sobre o papel e a função da arte, pós-modernismo, identidade cultural. Repensar conceitos. Esgotar argumentos. E poder ser uma das últimas pessoas a sair do museu sem sentir culpa. Melhor que ter amigos que compartilham gostos em comum é poder fazer o teste e provar o fato de que existem interesses em comum.
Nova York também se mostrou sensual (e aqui me sinto dando uma de Ítalo Calvino) em seus cheiros, gostos e cores. Os sabores da Índia, da China, do México e da Tailândia se misturaram à diversidade do orientalismo de China Town, ao mellow spirit de Little Italy, a realidade crua do Harlem e ao cool de Astoria, com um toque de casa de chá hip e um gostinho de biergarten.
A cidade me deu sua face assustadora (e dinâmica) pelas voltas no grande centro, em seu cenário ensandecido pós-futurístico megalômano à moda de Blade Runner na Times Square (ufa! Haja fôlego até pra descrever isso). E foi um soco no estômago em Wall Street (onde, em frente à Bolsa de Valores, tive o prazer de dar uma cuspida e limpar os sapatos).
Mas também se mostrou apaixonante por entre os cabos da Brooklin Bridge ao pôr-do-sol (e me lembro da lua linda que fazia naquele fim de tarde) e nas ondas do rio Hudson passando por debaixo do ferry para Staten Island.
E fez me sentir a menina mais sortuda do mundo por causa das companhias com quem tive o prazer de dividir refeições, vinhos, cervejas, conversas, impressões, planos, músicas, abraços e olhares. De Toronto a Nova York. Além de ter sido objeto de uma hospitalidade imensa (e não vejo problema em usar ‘objeto’ como termo aqui). Sortuda por ter tido a oportunidade de rever amigos que não via há algum tempo e, quem sabe, ter feito outros. De ter tido conversas interessantes e poder falar o que penso sem medo de parecer chata ou maçante demais, cansando a beleza e minando a paciência do meu interlocutor (e essas coisas acontecem).
Enfim. Não tenho como não ter gostado de um país que me recebeu tão bem. Com seus prós e contras, é claro, aspectos que maravilham e enojam, mas as pessoas são assim, as culturas são assim. Mas ainda foi muito pouco tempo para ter insights mais acertados sobre a cultura norte-americana. E foi uma experiência humbling também: não basta conhecer e ter um bom domínio da língua do lugar pra onde se vai – sacar as sutilezas exige muito tempo de observação e prática. E não é coisa para iniciantes. A comunicação, afinal, tem vários níveis, até chegar ao incomunicável. Foi um pouco chocante perceber que falta mais do que eu imaginava para entender certas peculiaridades de comunicação. Mas também faz lembrar (e ainda bem) que não é possível se diluir completamente em uma outra cultura, tendo sido criada num determinado lugar (não sei quanto às third culture kids – mas isso é papo pra uma outra conversa).
No final, me sinto feliz por poder desenhar a cidade e a experiência com palavras (e algumas fotos, de longe muito menos numerosas que as frases e caracteres que usei). Cada um fotografa como pode – na falta de talento com a câmera, a gente usa o que vem à mão. :-)